[Prisões de Korydallos-Porto Alegre] Sacco e Vanzetti: Uma viagem através do tempo – Texto de membros da CCF para um evento organizado pela Biblioteca Anárquica Kaos

Retirado de ContraInfo:

Apresenta-se abaixo um texto escrito em Atenas, na Grécia – por vários membros presos da Conspiração de Células de Fogo – para um evento da Okupa Biblioteca Anárquica Kaos, no Brasil.

A todxs xs companheirxs, a todxs xs nossxs irmãos e irmãs anarquistas presentes neste evento organizado pela biblioteca Anárquica Kaos. Deixem que os nossos pensamentos irrompam e viajem para o Brasil de forma a serem enviadas estas breves palavras, com a esperança de que possam sentir um pouco a nossa presença ao vosso lado.

Em resposta ao tema do evento a ter lugar durante a Semana Internacional de Solidariedade aos/às presxs anarquistas gostaríamos de lançar a nossa contribuição pessoal e histórica em relação ao caso de Nicola Sacco e Bartholemeo Vanzetti. A Conspiração de Células de Fogo foi desde o início um grupo anarquista de ação direta que aspirava a um recrudescimento da presença agressiva anarquista na Grécia. Assim, a CCF não hesitou em criticar muitas vezes aquilo que se acreditava estar a ser impeditivo da generalização dessa intensificação. Mas quando a opressão finalmente chegou à nossa porta, aí entendemos completamente que se não estivéssemos ao nível dos nossos padrões ter-nos-íamos recusado a defender a nossa identidade, os nossos pontos de vista políticos e a nossa própria substância. Além do mais, poderíamos ter acabado por estar em completo contraste com as nossas críticas contra outrxs no passado. Deste modo, sete anos após o dia em que a repressão se abateu sobre nós, continuamos na vanguarda da dignidade anarquista, pelo menos de modo que a percepcionamos. Recusamos-nos a nos desonrar de qualquer forma e defendemos o que acreditávamos que tínhamos de defender, pagando o preço da nossa atitude intransigente.

Voltando ao passado, numa época em que dois companheiros – os anarquistas da práxis forjados no fogo da revolta Nicola Sacco e Bartholomeo Vanzetti – foram presos com acusações de expropriação armada e assassinato, enfrentámos desafios que não são de modo algum inéditos. Um fato que beneficia de ampla evidência é que tanto Sacco como Vanzetti participaram em redes militantes informais de afinidade anarquista, todas elas foram afiliadas a publicações como o jornal anarquista Cronaca Sovversiva, em cuja publicação eles próprios ajudaram, publicação essa que apoiava a necessidade de propaganda pela práxis. Sabe-se também que estas redes militantes informais foram responsáveis por uma série de ataques que sacudiram os Estados Unidos de 1914 em diante, ataques esses que estavam a ser financiados por expropriações armadas. Finalmente, é um facto que alguns dos companheiros de Sacco e Vanzetti confidenciaram, após o assassinato dos dois companheiros, que eles eram dois dos cinco ladrões da fábrica de calçados em Braintree, Massachusetts. Um dos companheiros de Sacco e Vanzetti, Mario Buda, por exemplo, durante uma entrevista, quando lhe perguntaram sobre o financiamento do seu grupo, respondeu: “Nós geralmente íamos aos sítios onde poderíamos encontrá-lo (o dinheiro) e levávamo-lo“, ou seja, aos bancos e fábricas. Muitos anos depois, em 1955, ele recebeu a visita do anarquista Charles Poggi, que estava a investigar historicamente o caso de Sacco e Vanzetti. Na discussão entre eles, Buda admitiu, pelo menos, a participação de Sacco no roubo em Braintree com a frase “Sacco estava lá” (“Sacco c ‘era“). Poggi ficou também com a impressão de que Buda foi um dos assaltantes, mas devido à discrição daquele, não levantou a questão.

Os dois companheiros foram presos após uma perseguição e apesar de se encontrarem armados não havia elementos de prova de incriminação contra eles – sem a técnica de investigação de balística que não tinha sido aperfeiçoada ainda naquela época e uma vez as testemunhas não podiam testemunhar nada que fosse confiável. Assim, ambos os companheiros escolheram defender-se declarando que estavam inocentes do roubo, ainda que culpados como anarquistas – num tempo em que, por tão pouco que isto representasse, poderia ser prova suficiente para alguém ser processado, torturado, preso ou mesmo deportado – na medida em que a onda de ataques anarquistas que abalaram os EUA tinha levado o Estado a tomar medidas de emergência contra anarquistas e imigrantes anarquistas, através de uma série de leis.

No pico da histeria anti anarquista, a que puseram o nome de Red Scare [Medo Vermelho], os dois companheiros tentaram equilibrar-se sem rede de modo a evitarem a pena de morte e a manterem a dignidade – uma vez que teimosamente se recusavam a perder a sua identidade, embora isso pudesse revelar-se suficientemente condenatório também.

Infelizmente, o caso de Sacco e Vanzetti é lembrado hoje exclusivamente como um exemplo de montagem do governo. A narrativa histórica que tem prevalecido está a tentar lançar um véu no contexto histórico mais amplo da era em que se deu o julgamento de dois companheiros referidos, induzindo deliberadamente em erro – retratando-os como meros sindicalistas organizados quando na verdade Sacco e Vanzetti e quase todxs xs companheirxs em torno da Cronaca Sovversiva tinham sentimentos profundamente anti – formalistas, distanciando-se das organizações oficiais anarquistas.

Em última análise, o caso dos dois companheiros foi sendo degradado tornando-o numa história onde se eleva o valor da vítima, em vez de ser um exemplo atemporal de uma orgulhosa insurreição anarquista. Tal tema é quase desconhecido até hoje. Naturalmente que cada companheirx mantém sempre o direito de não dar sequer um pingo de si mesmx para o inimigo, especialmente quando têm evidências insuficientes – se as houver até – para o/a condenar.

No entanto, isso é uma coisa outra coisa é o fetichismo político da vítima que omite deliberadamente e totalmente aquelxs que optam pessoalmente por defender o seu compromisso militante à anarquia. E se alguém tem dúvidas, deixem-nos saber os motivos porque é que os nomes dxs companheirxs de Sacco e Vanzetti continuam a ser lançados no esquecimento. Quantos ainda se lembram ou sabem sequer alguma coisa da “dinamite-girl”, a velha companheira de 19 anos de idade Gabriella Antollini, que reivindicou a responsabilidade do transporte de armas e explosivos? Quantos se lembram de Nicola Recci que perdeu quase toda a mão durante a fabricação de dispositivos explosivos? Com que frequência é Carlo Valdinoci mencionado, ele que morreu pela explosão de uma bomba que estava a planear colocar na casa do ministro da Justiça Palmer; ou Andrea Salsedo, que foi atirado de uma janela pela polícia, durante um interrogatório acerca de uma reivindicação de responsabilidade que foi descoberta na sua loja de impressão? Todxs estxs e muitxs mais, estavam destinadxs a ser deixados de fora dos livros de história, porque como realmente é o caso não eram “inocentes”.

Neste ponto, apesar do stress e de se declararem inocentes das acusações, nunca Sacco e Vanzetti denunciaram o seu património insurrecionário. Um fato comprovado pelo número das ações ofensivas em todo o mundo feito em nome da solidariedade aos dois companheiros. Desde o bombardeio, usando um carro com fios, de Wall Street até ao pacote-bomba enviado para o embaixador dos EUA em Paris, bem como dezenas de atentados de embaixadas americanas em diversos países. Os companheiros muitas vezes exortaram eles mesmos o movimento a fazer retaliações contra o Estado e juízes. Em Junho de 1926, numa edição da Protesta Umana, Vanzetti escreveu entre outras coisas: ”Tentarei ver Thayer morto antes do anúncio da nossa sentença” e pediu aos/às companheirxs “Vingança, vingança em nosso nome e em nome do nosso modo de vida e mortxs “. O artigo conclui com  “Health Is In You” [A saúde está em você] que foi o título de um manual sobre dispositivos explosivos publicado pela Cronaca Sovversiva (alguns dizem que traduzido por Emma Goldman a si mesma).

A rica contribuição da anarquia insurrecional no movimento de solidariedade com Sacco e Vanzetti está a ser, em grande parte, negligenciada até hoje. Na ocasião da chamada para a Semana de Acção Internacional pelxs anarquistas encarceradxs, vale a pena ser definitivamente lembrado em toda a sua perspetiva o legado de tal solidariedade militante. Quem acredita que a dissociação com atos militantes de solidariedade é nova ou tem falta de raízes, está profundamente enganadx.

Um fato notável é que, enquanto certos círculos anarquistas na Argentina caluniavam Severino Di Giovanni, acusando-o mesmo de ser um fascista, a viúva de Sacco – numa correspondência, alguns dias após a execução de ambos os companheiros – expressava a sua gratidão pelo apoio daquele ao caso. Na mesma carta, indicava que o diretor de uma determinada empresa de cigarros com o nome “Combinador” se tinha oferecido para dar a um tipo particular de cigarros da marca o nome “Sacco e Vanzetti”, tentando obter descaradamente lucro da notoriedade do caso. Em 26 de Novembro de 1927, uma bomba colocada por Di Giovanni e companheirxs explodiu numa filial da referida empresa em Buenos Aires. Fazia parte desse mesmo grupo o companheiro de Sacco e Vanzetti Ferrecio Coacci, o qual tinha sido deportado dos EUA. Coacci também era suspeito no roubo pelo qual Sacco e Vanzetti foram condenados, tendo a sua casa sido a primeira a ser invadida na investigação do caso.

Esperamos que consigamos nestas poucas palavras incentivar o interesse dos/as participantes do evento, definindo as bases para um autêntica discussão de companheirismo sobre todas as questões acima mencionadas – uma vez que, infelizmente, estamos condenadxs a nada aprender da nossa história, condenando-nos assim ao mesmo erro, uma e outra vez.

Do coração, enviamos a todos vós as nossas mais calorosas saudações.

Por fim, devemos lembrar-nos da frase do anarquista Luigi Galleani, companheiro de Sacco e Vanzetti e um dos editores de Cronaca Sovversiva: “Nenhum ato de rebelião é inútil; nenhum ato de rebelião é prejudicial.

Os membros da Conspiração de Células de Fogo

Michalis Nikolopoulos
Giorgos Nikolopoulos
Haris Hatzimihelakis
Panagiotis Argirou
Theofilos Mavropoulos
Damiano Bolano

This entry was posted in CCF, Eventos, grecia, Guerra Social, Porto Alegre, presxs, Solidariedade. Bookmark the permalink.